1/22/2012

Fronteiras Permeáveis

O CASO DO MARCO PERDIDO

João Santo do Carmo, de 11 anos, e seus amiguinhos, fizeram uma grande descoberta.
João Santo, liderando uma expedição de umas vinte crianças, atravessou de canoa o igarapé Santo Antonio e foi para as margens do rio Solimões à procura do marco perdido.
O marco estava perdido na fronteira do Brasil com a Colômbia, entre as de Letícia, na Colômbia, e Tabatinga, no Brasil.
João Santo e seus amigos moram em casebres de palafita, a vinte metros da linha de fronteira.
As crianças não se preocupam muito com essa história de fronteira. Sabem apenas que “do lado de lá” as pessoas falam diferente, falam espanhol. É fácil falar. Todas as crianças da fronteira conhecem muitas palavras em espanhol. E algumas cantam uma música inteirinha em espanhol.
Fora isso, as crianças sabem que o outro lado não tem nada a ver com o Brasil. A bandeira é diferente e até os soldados têm uma roupa diferente. Mas as crianças de lá são muito parecidas com as de cá, e muitas vezes elas brincam juntas. Para não haver confusão, um dia elas escolhem o espanhol para a brincadeira e num outro dia escolhem o espanhol para a brincadeira e num outro dia escolhem o português. Todo mundo é amigo.
Mas João Santo, que é um líder internacional, percebeu que aqueles dois homens, um mais velho e outro mais moço, que chegaram à beira do igarapé, e disseram que estavam procurando “uma pedra grande”, eram homens muito poderosos. “Gente do governo”
Os homens disseram a João Santo, que veio logo lhes oferecer uma canoa para atravessarem o igarapé, que a pedra que eles procuravam tinha muito valor.
“É ouro?” – João arregalou os olhos. Atrás dele, os meninos cochicharam.
“Não é isso não” – disse o homem mais velho e certamente mais poderoso que o mais moço. “É uma pedra, que pode estar assim, deste tamanho (e apontou a cintura), como pode estar deste (e mostrou o joelho), mas pode também estar enterrada no chão. Mas é uma pedra importante, é um marco.”
“Eu moro no Marco”, disse João Santo. “A gente moro no Marco”, repetiram as outras crianças.
(O bairro do Marco é um grande amontoado de casinhas que se formou ao lado do Comando de Fronteiras do Solimões, do Exercito. Chama-se bairro do Marco porque nele há outro marco, de três metros de altura, dividindo o Brasil da Colômbia). “Pois é um marco também, parecido com aquele grande que vocês conhecem, é isso que a gente está procurando” – esclareceu o homem mais moço. “Agora, este que a gente está procurando é menor, e como o rio desbarrancou, ele deve estar meio enterrado, bem perto da margem”.
Aí João Santo entendeu tudo. E explicou para os outros que entenderam mais ou menos.
Os dois homens poderosos ainda atravessaram o igarapé e procuraram, procuraram. Entraram nas touceiras de capim alto, molharam os pés na água dos Solimões. Aí ficou escuro e eles desistiram de achar o marco.
“Eu vou achar” – disse João Santo, enquanto remava de volta pelo igarapé Santo Antonio.
“Quero ver” – disse o homem mais moço. “Amanhã a gente volta”.
No outro dia, felicidade. João Santo (e seus antigos liderados,  e outros que vieram até “do lado de lá” para juntar-se ao herói), apresentou-se aos dois homens, carregando um facão enorme, quase do tamanho dele.
“Eu achei o marco” – disse sorrindo.
“Então vamos ver”.
E foram todos, com a pequena canoa fazendo três viagens no igarapé até a margem do Solimões.
O marco ali estava. João Santo o encontrou quase enterrado no meio do capim. O marco afundo no aluvião, com a mudança natural da desembocadura do igarapé Santo Antonio. O homem mais velho explicou a todas as crianças que, muito antigamente, no ano de 1952, aquele marco tinha uns dois metros de altura.
Agora, todos estão felizes. João, as outras crianças, os “os homens do governo”. João Santo é fotografado junto a sua descoberta.
O homem mais velho, na verdade o astrônomo Dilermando de Moraes Mendes, da Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, do Itamaraty, voltou sorrindo na canoa, cercado de infância internacional.
O homem mais moço, o subchefe da Comissão, Joaquim Eduardo Wiltgen Barbosa, distribuiu notas e notas entre todos os que ajudaram. João Santo ganhou uma de cinco cruzeiros.
A única coisa que João Santo não ficou sabendo, nem entenderia bem, é que a Colômbia não pode mais reivindicar  vinte mil metros quadrados de terra daquela região. Com a descoberta do marco, fica provado que a desembocadura do igarapé Santo Antonio mudou de lugar naturalmente. A desembocadura do igarapé era um dos pontos limítrofes da fronteira.
No dia 15 de fevereiro de 1976, domingo, João Santo do Carmo, de 11 anos, foi muito mais importante do que ele e as outras crianças puderam imaginar.


Portela, Fernando. “Ocaso do marco perdido”, in Fronteiras – viagem ao Brasil desconhecido. São Paulo, Alfa-Ômega, 1978, p 191-4
Extraído do livro didático Marcos & Diamantino, Coleção Geografias do mundo 6ª Série 7º Ano, FTD- p27

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